Criatividade (2)

O MITO DA CRIATIVIDADE EM ARQUITETURA 

Edson Mahfuz 

Quem quer que se debruce sobre a literatura arquitetônica dos anos 1980 encontrará afirmações definitivas no sentido de que um dos principais problemas da arquitetura moderna  − então quase todos acreditavam que ela possuía muitos − era sua recusa em considerar a tradição como ponto de partida de um projeto e a incessante busca do novo. Cada projeto partiria do zero e seu resultado deveria ser sempre ‘original’, isto é, algo nunca antes visto.

Os mesmos cronistas da modernidade propunham como saída daquele impasse a retomada de valores formais históricos e a realização de uma arquitetura com a qual o público pudesse se identificar mais facilmente.

Esse mesmo leitor interessado em desvendar os caminhos da arquitetura contemporânea ficaria perplexo ao perceber que muitos dos campeões da ‘arquitetura falante’, do ‘pós-modernismo’ da ’arquitetura-para-o-povo’ são os autores ou mentores dos que estão criando os objetos insólitos que vemos em inúmeras cidades norte-americanas, européias e asiáticas. Só nos livramos até agora dessa praga por falta de recursos mas o nosso dia chegará, sem dúvidas.

Podemos atribuir parte da culpa ao momento cultural em que vivemos, dominado pelos valores do mercado e pelos princípios da propaganda e do marketing, o que faz com que a arquitetura tenha passado a se preocupar mais em causar impacto visual do que realmente servir à sociedade. Mas boa parte da culpa pela perda do entendimento da arquitetura como disciplina e ofício é dos próprios arquitetos, que há anos vem pervertendo o gosto do público e o seu próprio por meio do abuso das metáforas mais banais e da exaltação do novo como valor primordial.

Subjacente ao caos visual da cidade contemporânea está a grande confusão que existe a respeito da noção de criatividade em arquitetura. Tal fato não seria preocupante se não tivesse tantos efeitos nocivos para a prática da arquitetura. Por um lado, uma noção equivocada por parte dos leigos leva a uma demanda por objetos com os quais a arquitetura não deveria se envolver. Por outro, basear uma prática sobre uma noção errada de criatividade significa produzir arquiteturas irrelevantes, na melhor das hipóteses.

Do mesmo modo que com muitos outros termos mal compreendidos − como forma, por exemplo − podemos falar de ‘criatividade’ e criatividade.

Para leigos (usuários em geral, clientes, imprensa não especializada), estudantes de primeiros anos e até muitos arquitetos, criatividade é algo ligado ao imprevisto, ao insólito, ao surpreendente, cuja obtenção é dependente de um talento superior inato. Daí a existência e os elogios conferidos a edifícios de aparência estranha, cuja lógica é muito difícil de entender. Parece haver uma correlação entre criatividade e variedade, movimento, impacto visual, e outras categorias que levam ao estranhamento. Vista desse ponto de vista, a simplicidade e a elementaridade são sinônimos de monotonia e falta de criatividade.

Existem experts em "criatividade" que sugerem todos os tipos de origens para a forma arquitetônica: em alguns círculos é considerado criativo transformar um cinzeiro ou um croissant num edifício. Outros desenvolvem oficinas de sensibilização, visando "soltar" a criatividade de estudantes e arquitetos, aparentemente reprimida por uma vida tão preocupada em encontrar soluções para os problemas quotidianos.

Nenhuma dessas pessoas chega realmente a entender o que significa a criatividade em arquitetura. A consequência mais importante e danosa do ponto de vista dominante é que a forma é vista como algo independente, como algo que se acrescenta aos aspectos especificamente arquitetônicos de qualquer problema. A mesma confusão envolve o entendimento do componente artístico da arquitetura, que para muitos é algo externo ao processo projetual, um plus estético que se ‘acrescenta’ à construção.

Como uma aproximação a uma definição mais precisa da criatividade arquitetônica, proponho que o seu significado é diferente do sentido comum e do sentido que tem para as artes plásticas, para a publicidade, para a moda, etc.

Toda atividade criativa é essencialmente solução de problemas. O que divide as atividades criativas em pelo menos duas categorias é a existência, em algumas, de problemas propostos pelo próprio autor, como nas artes plásticas, enquanto outras como a arquitetura estão relacionados à problemas externos à disciplina, que podem ser mais ou menos restritivos à liberdade do autor.

Em outras palavras, a criatividade só existe, só se exprime, face a um problema real. Simplesmente não há criatividade sem problema referente. Assim, o criativo (ou o artístico) em arquitetura se revela como um modo superior de resolver, através da forma, os problemas práticos que definem um dado problema arquitetônico.

Se o problema da publicidade é persuadir e o da moda é dar forma ao vestir, qual seria o problema da arquitetura? O que estabelece que a criatividade em arquitetura seja algo específico são várias questões: o uso, o custo elevado e a permanência dos edifícios.

A questão do uso parece óbvia. Sem programa não há arquitetura; no máximo alguma escultura em cujo interior se pode caminhar. O uso/ programa indica que necessidade da sociedade precisa de espacialização; sua extrapolação nos leva perigosamente próximos da irrelevância e da irresponsabilidade. Todo programa deriva de um cultura específica, que deve ser o pano de fundo de qualquer realização arquitetônica.

A escassez de recursos na América Latina nos obriga a fazer muito com o pouco de que dispomos. Qualquer solução "criativa" -no sentido de elementos não justificados por uma rigorosa lógica de projeto- significará maiores custos sem garantia de aumento de qualidade.

E quando falamos em permanência nos referimos não apenas à durabilidade do edifício, dependente da construção correta, mas também da sua capacidade de se contrapor ao caos visual da cidade contemporânea ao longo do tempo

O raciocínio desenvolvido até aqui quer indicar que não há nada de criativo em projetar e construir objetos de forma inusitada, empregando geometrias complicadas e caracterizados por diagonais, pontas e outras complicações formais, principalmente porque os recursos citados não respondem a nenhum problema real. Pelo mesmo motivo não há a menor criatividade em empregar estilos históricos para edifícios contemporâneos, como é a presente moda no Brasil. Pelo contrário, isso só demonstra como são limitados e pouco criativos tanto promotores quanto criadores dessa espécie bastarda de arquitetura.

A verdadeira criatividade em arquitetura reside em resolver seus problemas específicos por meio da síntese formal do programa, do lugar e da técnica, resultando em objetos dotados de identidade formal intensa, a qual deriva do emprego de critérios tais como a economia de meios, o rigor, a precisão, a universalidade e a sistematicidade.

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Publicado originalmente em Summa+, nº 67, 2004, Buenos Aires, como "El mito de la creatividad en arquitectura".

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